Em julho de 2014 eu era um jovem de vinte e poucos anos passando por algumas crises. Mas nada disso importava naquele momento, porque tinha uma copa do mundo sendo jogada no meu país. E que copa. Aquele torneio me fez apreciar mais o futebol como um jogo estratégico, principalmente depois de durante a copa eu ter começado a ler o blog Painel Tático, de Leonardo Miranda. Foi esse blog que me fez querer ter um blog da mesma linha, só que com Futebol Americano.
E 6 anos depois de ter começado a estudar estratégia tanto de FA quanto de futebol, eu cheguei a uma conclusão: Futebol é tão complexo quanto Futebol Americano. Não, não é menos complexo.É igualmente complexo. A cultura esportiva brasileira tratou o esporte de forma simplista e viciada a ponto de estarmos alienados a esse fato. E além de ser complexo, tem muitos conceitos parecidos.
Se você não acredita em mim, eu te desafio a assistir 10 minutos de um jogo de futebol e me responder todas essas perguntas: A marcação dos times são por encaixe individual, encaixe por setor ou é por zona? Se for por zona, a zona é com linhas compactas? Tem pressão no setor na bola ? A linha está alta, média ou baixa? Já o time atacando, qual é o tipo de saída de bola dele? Passando a bola o time é mais vertical ou horizontal? O ataque é posicional? Como os atacantes dão profundidade ao time? E essas são apenas algumas das perguntas que podem ser feitas sobre como um time joga.
Assistindo 10 minutos de um jogo é praticamente impossível de responder todas essas perguntas com precisão. E isso pelo mesmo motivo de que é difícil tentar explicar alguém os conceitos ofensivos do Futebol Americano sem dar oportunidade e tempo da pessoa entender aquela teoria na prática, na hora de assistir o jogo. Tem uma curva de aprendizado, de se treinar o olho, que é a mesma tanto pro Futebol quanto pro FA.
Mas isso tudo nem tem a ver com o tema do post, Que é provar que futebol e FA são sobre a mesma coisa: Espaço.
É tudo sobre espaço
O artigo mais importante desse site com certeza é o do Leverage. Compreender os conceitos de Leverage e espaço te faz ser capaz de entender o sentido de qualquer esquema do Futebol Americano.
O futebol também é um jogo sobre espaço. Se no FA você precisa conquistar determinado espaço para poder avançar com a bola nele, no futebol você precisa de espaço pra finalizar com eficácia. É muito mais fácil acertar o mesmo chute no gol se você estiver sozinho cara a cara com o goleiro do que se o adversário estiver em uma retranca com todo mundo na área. Esse também é o motivo de a posição de centro-avante ser tida como a mais importante e badalada no futebol. Gênios como Romário e Ronaldo tinham valor inestimável para os times que jogavam porque eram capazes de fazer finalizações certeiras mesmo com pouco espaço.
Por isso que no futebol existem basicamente as mesmas formas de se conseguir espaço que no FA: Superioridade numérica (ex. triangulações e compactação de linhas) força bruta (ec. centro-avante “trombador”, volante “cão de guarda”), Velocidade e direcionamento falso (ex. arrancadas e dribles como pedalada e elástico).
Essa semelhança não é a toa. Futebol, FA e Rugby são irmãos e tem praticamente a mesma origem. A evolução de cada um fez com que o FA parecesse muito mais com o Rugby visualmente, quando na verdade em suas nuances táticas é mais parecido com o futebol.
Esses são alguns exemplos de semelhanças entre esquemas do futebol e do FA.
Criar superioridade numérica
Diversos conceitos de passe do FA, como o Flood, o Spacing e o 4 verticals tem como objetivo criar superioridade numérica em determinada parte do campo.
No futebol, quando você está jogando na pelada e pede pra alguém aparecer pra você tocar, você está basicamente pedindo pra se criar superioridade numérica na área onde você está. Esse conceito é levado a outro nível quando falamos de um time comando por Sampaoli, por exemplo. Pra ele o campo de ataque tem 3 zonas, e a tarefa do time é criar superioridade numérica progressivamente nelas para levar a bola a área.
Na defesa temos o que chamamos de defesa compactada em linhas. Quando as linhas de defesa estão recuadas, com a última linha com os 4 defensores dentro da área, chamam isso de defender o funil. Você está criando um superioridade numérica prévia em uma área onde a maioria das assistências acontecem (nos lados da área) e também em frente da área com a segunda linha.
Esticamento horizontal e vertical
No FA existe um conceito de passe chamado de Hank. Esse conceito é famoso pela seguinte frase “Eu posso botar 5 baldes no campo e com certeza algum deles vai estar livre se só tiver 4 defensores ao longo dessa área”. Esse conceito estica a defesa Cover 3 horizontalmente ao longo do campo.
No futebol existe uma coisa curiosamente semelhante ao conceito Hank, que é a chamada saída de 3. Nela, um volante recua e fica entre os zagueiros, que vão pras laterais do campo enquanto os laterais avançam. A vantagem dessa saída de bola é que ela dá facilidade para o time sair de qualquer lado, além de colocar mais gente na frente pra receber. E pense, se você tem 5 jogadores na frente contra um time que se defende no 4-4-2, você tem superioridade numérica contra os atacantes e contra os meias. (3×2, 5×4). A defesa está esticada, e o espaço foi criado.
Se o assunto for esticamento vertical, no futebol estamos falando de profundidade. Profundidade é a condição de um ataque ter sempre alguém avançado perto da área pra receber a bola. Pontas e Centro-Avantes costumam ser responsáveis por essa tarefa. O pivô feito para dar a bola outro jogador vindo de trás é nada mais que segurar uma dupla de zaga para que esse jogador fique livre pra finalizar. Daí, você esticou as linhas de defesa verticalmente pra alguém vir de trás com espaço pra finalizar.
Marcação individual ou zona? Linha alta ou baixa?
Assim como no FA, no futebol também temos marcação individual ou por zona. E algumas questões sobre vantagens x desvantagens entre elas são parecidas. A marcação totalmente individual (chamada de encaixe longo) costuma ser mais intensa e, portanto, cansa mais. Já a por zona não cansa tanto, mas requer um nível maior de concentração e sincronia. Exatamente como no Futebol Americano. No futebol, o mais comum no Brasil é os times usarem os encaixes no setor, que é individual contra qualquer adversário no seu setor, não cansando tanto e dando flexibilidade aos marcadores.
Uma forma da defesa não dar espaço pro ataque trocar bola no seu campo e deixa-los sempre em impedimento é a linha alta. Assim você não dá espaço pro adversário controlar o jogo pela posse de bola e já se coloca em posição de ataque ao recuperá-la. É assim que o Flamengo de Jesus joga.
O que dá pra se notar da linha alta é que é uma tática agressiva e arriscada. Requer muita disciplina e o menor erro na linha de impedimento pode deixar o adversário na cara do gol. Vários gols feitos dessa forma vem a memória. O do Bebeto e o do Romário contra a Holanda em 1994 são dois exemplos.
No Futebol Americano temos a escolha de colocar um CB em Off ou em Press. Fazendo uma analogia dá pra comparar o alinhamento Off a uma retranca de linhas baixas enquanto a linha alta pode ser comparada com a marcação Press, com bump-and-run do CB contra o WR. Nela o CB tenta ao máximo não dar liberdade ao WR para correr sua rota e assim quebrar sua sincronia com o QB. É uma técnica sufocante que assim como a linha alta, é altamente agressiva e arriscada. No menor deslize do CB, o WR está livre pra marcar o gol. Digo, o touchdown.
Assim como o Futebol Americano, o Futebol é o tipo de esporte onde você pode passar a vida inteira assistindo sem compreender as nuances táticas do que você vê. Os americanos não costumam gostar do nosso futebol. Nós não costumamos gostar do futebol deles. A verdade é que os dois esporte são o que são: Estratégicos, populares e apaixonantes.
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